A Bizarrice de Javier Milei

Artigo de: Rafael Santos

Javier Milei, atual Presidente da Argentina, é, a muitos títulos, uma pessoa bizarra.

Em primeiro lugar, quem de nós pode dizer que conseguiria imaginar um banqueiro, analista, consultor e Professor universitário - tudo profissões que Milei exerceu antes de entrar de cabeça na política - com um cabelo muito despenteado, patilhas pronunciadíssimas, e voz rasgada a gritar: "VIVA LA LIBERTAD, CARAJO!"? Mais do que isso: quem de nós pode dizer que conseguiria imaginar essa mesma pessoa a fazer uma aparição num programa de TV, vestido de "General Ancap", líder de Liberland, para denunciar, numa ópera cantada, os perigos da economia argentina? 

Pessoalmente, não conheço nenhum analista ou consultor, banqueiros conheço um, e Professores universitários conheço aos magotes. Em ambos os casos, posso asseverar que são gente pacata, enfadonha mesmo, muito distantes da imagem cultivada pelo homem com a alcunha de "El Loco".

Para além desta estranheza - palavra mais benigna que bizarrice, não? - gerada pela dissonância entre a vida pretérita e a vida presente de Javier Milei, temos ainda a peculiaridade da posição de Milei no grupo político em que se insere a nível internacional: a direita radical/extrema-direita, nacionalista e populista.

Nem todos os partidos e figuras da direita radical e da extrema-direita são iguais entre si, é verdade. Também é verdade que Milei partilha algumas das posições características desta área política, principalmente se tivermos em conta apenas as Américas: aproximou-se do negacionismo nos tempos da Covid (check); vê a sua Presidência e a sua ação política em termos religiosos, como um mandato não só popular, mas também místico, imprimindo, inclusive, linguagem de roupagem religiosa em documentos públicos, como o Pacto de Maio (check); é virulentamente anti-feminista e anti-aborto (check); protagoniza, regularmente, cenas que indiciam, no mínimo, pouco tato diplomático, como quando insultou a mulher de Pedro Sanchéz (check); é contra o chamado "marxismo cultural" (check, check, check). Não obstante estas aproximações, existe uma diferença muito substancial de base, que distingue o Presidente argentino dos seus congéneres da direita radical: Milei é um libertário e um anarco-capitalista.

Que quer isto dizer? De forma muito resumida, Milei acredita na possibilidade de uma sociedade orientada por dois axiomas: o princípio da self-ownership (eu sou o proprietário do meu corpo, e apenas eu posso dar autorização para que terceiros o usem), e, mais importante ainda, o princípio da não-agressão (estão precludidas todas as formas de violência e coerção contra o indivíduo, sendo apenas admissíveis os contratos ou pactos que resultem de um consentimento expresso pela pessoa visada por eles). O corolário destes dois princípios é o de que o Estado - ou o "estado", para escrever à libertário -, como detentor do monopólio da força, é uma instituição ilegítima, na medida em que ninguém, em teoria ou em concreto, concordou submeter-se a ele, e deve deixar de existir. Na ausência do Estado, toda a regulação das relações humanas seria feita através do mercado, que não é mais do que um sistema de trocas e contratos voluntários entre pessoas. Entra e sai quem quer, quando quer, tudo sem coerção: assim é a filosofia dos libertários, e assim é a base de pensamento de Javier Milei (embora, de um ponto de vista prático, o Presidente argentino esteja a almejar mais para o minarquismo do que para a anarquia - caso para dizer: "Loco, pero no mucho").

O último fator que faz Milei merecedor do epíteto de "bizarro", é a sua originalidade naquilo que é o status quo da política argentina.

A crise inflacionária, o déficit crónico das contas públicas e a anemia da economia argentina explicam-se bem. Entre o fim do século XIX e os anos 1920, a Argentina estava no clube dos mais ricos do mundo - pertencia ao top 10. Essa riqueza desapareceu em meados da década de 30, mas a sua memória perdurou. Foi com base nessa memória, e com a expectativa de que a prosperidade regressasse com o fim da II Guerra, que Péron, um populista de sucesso e a figura política mais influente da história da Argentina, desenhou as suas políticas públicas: um amplo e garantístico Estado Social para os trabalhadores; a nacionalização de numerosas empresas e infraestruturas; o aumento artificial de salários; e o fomento das indústrias nacionais através do Estado e do protecionismo alfandegário. Quando descobriu que não tinha economia para pagar isto - porque a prosperidade não regressa por obra e graça do Espírito Santo, porque adotou o protecionismo alfandegário e industrial, porque tributou pesadamente o setor agro-pecuário, o único produtivo, num favor à sua base eleitoral urbana e sindical -, fez o que podia: imprimiu dinheiro.

Pelos próximos oitenta anos (Péron governou o país de 1946 a 1955), políticos de diferentes matizes, peronistas e anti-peronistas, vieram e foram, mas nenhum conseguiu romper com o legado de Péron e tirar a Argentina do seu ciclo vicioso: a economia não gera tributos suficientes para cobrir os gastos inscritos no orçamento; o Estado imprime dinheiro para cobrir os gastos, mas o dinheiro desvaloriza-se, e não cobre nada; em desespero de causa, o Estado pede empréstimos ao exterior, empréstimos esses que devem ser pagos com tributos insuficientes e uma moeda desvalorizada (aqueles que são pagos em dólar não dão menos dores de cabeça); a conta aumenta mais um pouco, mais tributos são cobrados, e a roda gira de novo. Os resultados deste estado de coisas não podiam ser outros: uma economia largamente dependente do setor primário, fechada e pouquíssimo competitiva, oficialmente baseada no peso argentino, mas oficiosamente sustentada nos dólares que os argentinos escondem a todo o custo do governo; uma inflação que, de 1921 até hoje, anda na média anual dos 105%; e um Estado que, desde os anos 50, já suspendeu cinco vezes o pagamento da sua dívida externa, já trocou outras cinco vezes de moeda, e que é, nada mais nada menos, o maior devedor do FMI. Tendo em conta a dimensão do sarilho, não admira que os argentinos tenham optado por dar um salto de fé votando em Milei.

Eleito com 57% dos votos, o libertário deitou mãos à obra, municiando-se com a legislação necessária para fazer avançar reformas, em particular: um decreto de emergência, em vigor até 31 de dezembro de 2025, e uma lei de bases (batizada como "Lei Omnibus", dada a abrangência do seu conteúdo), que, após largas alterações e cedências de parte a parte no legislativo - a versão original tinha 664 artigos, a final ficou reduzida a 238! -, acabou por ser aprovada em julho de 2024. Obtido o combustível, ligou-se a motosserra.

Salários e pensões, ou foram atualizados a valores abaixo da inflação, ou não foram atualizados de todo. Controlos nos preços foram diminuídos ou completamente eliminados. No mercado de arrendamento, para além de se abolirem os tetos às rendas e às atualizações nos valores dos contratos, procedeu-se a uma mais larga desburocratização dos requisitos contratuais (nomeadamente quanto à duração do contrato e à moeda com a qual se devem realizar as prestações). Investimentos em obras públicas foram cortados em 83%. Subsídios para energia e transportes também foram cortados. A maioria dos organismos, institutos, e instituições do Estado sofreram cortes nos respectivos orçamentos. Alguns houve que foram mesmo eliminados, refuncionalizados ou privatizados. Também houve despedimentos de largas quantidades de funcionários públicos, sendo que a meta é libertar para o setor privado cerca de 75.000 trabalhadores até ao fim do mandato presidencial. Dentro deste festim de descompressão, cortes, privatizações e despedimentos, o único ponto em que houve, de facto, um aumento da despesa pública (cerca de 13%) foi nos subsídios de alimentação e nas pensões para famílias com filhos ou mulheres grávidas - foi a forma encontrada para garantir que as dores do reajustamento macroeconómico eram minimamente atenuadas, apesar dos protestos estudantis, sindicais e de associações de esquerda em abril e outubro de 2024.

Para um sistema que se habitou a viver num espartilho regulatório e num ciclo vicioso de inflação e déficit, tudo isto foi uma brutalidade. Assim, para cada sucesso do governo Milei em 2024, houve um contraponto: se o déficit nas contas se começou a saldar, existindo meses com superávit, houve também um aumento do desemprego (de 6.9% para 7.7%); se a inflação começou a descer, com a inflação mensal a descer de 25.5%, em dezembro de 2023, para 2.4%, em fevereiro de 2025, também é verdade que houve uma contração de 1.7% do PIB em 2024, de acordo com o Banco Mundial. Não obstante os contratempos, as projeções dizem que o PIB argentino pode crescer 5.5% em 2025, não só graças à estabilização macroeconómica, mas também graças ao Regime de Incentivos para Grandes Investimentos, uma medida destinada a facilitar o investimento estrangeiro nos setores das matérias primas e da energia - um primeiro passo no sentido de abrir a economia argentina a investimentos estrangeiros.

Sendo verdade que o futuro parece risonho para Javier Milei e o seu executivo, a verdade é que ainda há algumas questões para as quais a resposta não é clara: a redução da inflação e do déficit é sustentável a longo prazo? Conseguirá Milei quebrar o protecionismo quase centenário da economia argentina, e liberalizá-la? Se o partido de Milei, o Liberdade Avança, perder as eleições intercalares de outubro de 2025, que consequências pode isso ter para as políticas que vier a adotar daqui para a frente? Cá estaremos para avaliar as respostas.

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