Liberdade não é ausência de Dever.

Vivemos hoje, sob o reinado da palavra provavelmente mais cativante, repetida até à exaustão, evocada  em protestos, usada em discursos e manipulada em slogans: liberdade. 

Liberdade de expressão, liberdade de escolha, liberdade de circulação, liberdade económica,  liberdade de ser, de crer, de não crer, de fazer. A liberdade tornou-se a palavra-fetiche das democracias  modernas, o símbolo civilizacional que, após séculos de sujeição, ousou declarar que o ser humano  tem o direito de ser senhor de si mesmo. Contudo, como todas as grandes ideias, a liberdade também tem os seus perigos, sobretudo quando invocada sem medida, sem consciência, sem responsabilidade, como uma bandeira vazia onde cada um projeta os seus próprios caprichos, sem olhar para o impacto coletivo dos seus atos. 

É aqui que enalteço a leitura de Benjamin Constant e o seu discurso ”A liberdade dos antigos  comparada à dos modernos” proferido em 1819 ao qual reconheço uma atualidade pungente.

Constant, um grande pensador liberal e observador privilegiado da transição do Antigo Regime e do constitucionalismo moderno, apresenta uma distinção fulcral que, infelizmente, muitos esquecem ou fingem esquecer: a diferença entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. Os antigos, por um lado, cidadãos das repúblicas gregas, sobretudo de Atenas, concebiam a liberdade como  participação direta e contínua na vida política. 

Ser livre era deliberar sobre as leis, votar, intervir, decidir. Já os modernos, ou seja, nós,  compreendemos a liberdade como espaço de autonomia pessoal, como o direito de conduzir a vida  privada sem intromissão do poder político. 

Não se trata de dizer que uma é superior à outra. Trata-se de reconhecer que são distintas e que cada uma traz riscos específicos. E o risco contemporâneo, que Constant denuncia com uma clarividência  impressionante, é este: em nome da liberdade individual, podemos muito bem negligenciar a liberdade  política. Podemos, em nome do direito a gozar tranquilamente dos nossos interesses, alienar o poder que ainda nos pertence. Podemos deixar que o Estado nos substitua em tudo, desde que não nos incomode — desde que nos deixe consumir, circular, publicar o que seja e crer que somos livres. E nesse exato momento, estaremos a entregar o nosso destino a mãos alheias, convencidos de que somos senhores, quando já somos súbditos. 

Como tal, a liberdade moderna é, para mim, frágil. Fragiliza-se na sua própria glória. Como ela se traduz sobretudo por independência privada, não obriga necessariamente à participação. Exige apenas que o Estado se abstenha. Ora, este modelo, embora tenha permitido conquistas notáveis — os direitos civis,  a limitação do poder, o pluralismo —, também tornou o cidadão vulnerável à apatia, à desmobilização, ao egoísmo político. Há quem se orgulhe de não querer saber de política; há quem veja no voto uma perda de tempo; há quem aceite de bom grado que outros decidam, desde que não lhe toquem no bolso ou no ecrã. Esta indiferença é uma doença moral disfarçada de liberdade. 

Constant propõe, contra esta doença, um antídoto inteligente e moderado: o sistema representativo.  Este, compreende que os cidadãos modernos não podem, nem querem, estar todos os dias reunidos em assembleias. O comércio, a propriedade, a profissão absorvem as suas energias. Mas o facto de delegarem o poder não os exime da responsabilidade de o controlar. A representação é uma delegação — não uma renúncia. A liberdade não é compatível com a passividade. O cidadão livre, no mundo  moderno, é aquele que vigia, questiona, participa, destitui quando necessário. Não se trata de viver para a política, como os antigos; trata-se de incluir a política no horizonte da vida moral, de saber que o bem privado não é sustentável sem um espaço público íntegro. 

E aqui surge um ponto crucial, tantas vezes ignorado pelos que se dizem “amantes da liberdade”: a liberdade não é absoluta. Nunca foi. Nunca poderá ser. A liberdade total – aquela onde cada um faz o que quer, quando quer, como quer, sem dever nada a ninguém – é um mito perigoso. É o caminho mais curto para o caos social, a desigualdade extrema, o colapso da ordem comum. A liberdade exige,  paradoxalmente, limites — não para sufocá-la, mas para protegê-la de si mesma. Exige leis justas, instituições transparentes, cultura cívica. Exige o reconhecimento de que a minha liberdade termina onde começa a dignidade do outro. Exige responsabilidade. E, mais do que isso, exige compromisso com a própria ideia de liberdade, para que ela não seja pervertida por discursos autoritários, por populismos manipuladores ou por indiferenças irresponsáveis. 

É por isso que qualquer radicalismo liberal é tão nocivo quanto o autoritarismo estatizante. Ambos  negam a complexidade da vida política. Ambos querem fórmulas simples para realidades complexas.  A liberdade não se realiza na pureza abstrata dos ideais absolutos; realiza-se no meio das  contradições, dos conflitos, das tensões da vida democrática. E aí é preciso maturidade: para suportar  divergências, para resistir a simplificações, para recusar tanto o Estado que tudo quer controlar como  o mercado que tudo quer comprar. Ser livre, no século XXI, exige mais do que entusiasmo ideológico.  Exige consciência social, responsabilidade cívica, sensibilidade histórica. 

Benjamin Constant também nos lembra que a liberdade moderna só se sustenta se for acompanhada de um projeto moral e coletivo de aperfeiçoamento humano. Não basta sermos felizes. Não basta sermos confortáveis. É preciso sermos dignos. A liberdade deve educar, deve elevar, deve formar cidadãos — não apenas consumidores. Deve pôr-nos em contacto com a nossa parte mais nobre: o  desejo de justiça, de participação, de elevação espiritual. Caso contrário, seremos uma sociedade de escravos satisfeitos, entretidos com os brinquedos da autonomia enquanto os verdadeiros fios do poder se desenrolam longe do nosso olhar. 

Não se trata, portanto, de escolher entre a liberdade antiga e a moderna. Trata-se de aprender a  conjugá-las. Precisamos da liberdade moderna – da segurança, da propriedade, da privacidade, da  pluralidade – mas também da liberdade antiga, na sua essência democrática e participativa.  Precisamos de instituições que não só protejam os direitos, mas que formem o caráter cívico, que  despertem no cidadão a consciência de que, mesmo que ele não se interesse pela política, a política interessa-se por ele. E que, se ele abdicar do poder, alguém – mais esperto, mais organizado, mais interessado – o exercerá por ele, muitas vezes contra os seus próprios interesses. 

O que Constant nos oferece, afinal, é uma crítica não ao passado, talvez uma crítica intemporal, de todos os presentes de quem o ler. Uma crítica à ingenuidade dos que confundem liberdade com desregulação, e à preguiça dos que trocam autonomia por comodidade. Por isso digo e defendo que: liberdade, sim – mas não qualquer liberdade. Uma liberdade consciente, vigilante, lúcida, humanista. Uma liberdade que saiba que não há independência sem dever, nem autonomia sem compromisso. Porque se aceitarmos que a autoridade nos poupa de todos os cuidados, como dizia Constant, restar-nos-á apenas o cuidado de obedecer e de pagar. E isso não é liberdade. Isso é submissão disfarçada de escolha.

Artigo de: Miguel Bento Alves

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