Artigo de: Bruno Miranda e Silva

O BRICS, formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, nasceu no início dos anos 2000 como uma etiqueta do mercado financeiro que marcava os países com potencial para crescimento econômico e peso geopolítico. Com a crise financeira de 2008 e a acelerada emergência da China, o grupo se consolidou como fórum político e econômico, projetando-se como uma possível ruptura com o bloco ocidental. Para alguns, o grupo representa a possibilidade de um mundo multipolar menos dependente dos Estados Unidos e da Europa, para outros, não passa de uma rearrumação no tabuleiro global, conservando as estruturas que produzem dependências econômicas e desigualdades. 

Tal como no início do século passado, é sabido que a multipolaridade, ou seja, a existência de vários pólos de poder, não garante por si só que as nações periféricas deixem de estar em uma posição subordinada aos centros hegemônicos, seja este novo ou velho. A multipolaridade pode significar que a dominação deixe de ser monopólio de um bloco, sendo assim compartilhada entre diferentes potências. Se a lógica central do sistema econômico global atual permanecer, as assimetrias históricas continuarão a ser reproduzidas, ainda que perante novas formas e com novos protagonistas. Após a Segunda Guerra mundial, a transição para uma hegemonia dos Estados Unidos sobre os países europeus e seus aliados, tomando o lugar do Reino Unido, representou um rearranjo geopolítico, mas não inaugurou um novo modelo de governança emancipadora. Da mesma forma, multipolaridade contemporânea redistribui apenas o poder entre elites, sem afetar as bases do sistema econômico atual, como a dependência tecnológica e financeirização.


Diferentemente da União Europeia, o BRICS não tem uma estrutura jurídica, sede, secretariado ou mesmo mecanismos de governança, mostrando uma clara falta de controle institucional consolidado. A ausência de estatutos, órgãos permanentes e uma agenda clara é demonstrado pela grande divergência em discursos e ações dos países membros. Os encontros anuais do BRICS servem como uma certa vitrine diplomática, porém não criam uma coordenação estratégica real. A distância geográfica do bloco cria projetos distintos entre seus países membros que são conflitantes, dificultando a articulação de um bloco que possa pesar como ator geopolítico. Isto é visto muito bem quando se notam as posições de alguns países face aos conflitos no Oriente Médio, com o Brasil e África do Sul apoiando uma alternativa jurídica para o conflito. A Índia, ao contrário disso, tem se posicionado como aliado às forças de Israel, apoiando a continuação do conflito, especialmente durante o governo de Narendra Modi. A heterogeneidade ideológica, ao contrário de uma virtude, seria um obstáculo à construção de uma agenda unificada. 

Embora os países do BRICS não sejam neoliberais ortodoxos, com bancos públicos e protagonismo estatal em setores estratégicos, isso não significa que são uma ruptura com o sistema, nem uma aproximação de tal. A heterodoxia econômica confere em parte uma autonomia fragmentada, mas não lidera um desenvolvimento que não deixa partes de sua população para trás. 


Tais elementos conferem em parte uma autonomia face às instituições de Bretton Woods e à lógica de irrestrita liberalização do fim do século passado. Porém, essa autonomia não implica um compromisso com redistribuição de renda.


A criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), celebrada como um contraponto às instituições dominantes formadas em Bretton Woods, especialmente o FMI, continua com amplas limitações. A utilização dos recursos bancários demonstram isso claramente, cuja destinação são majoritariamente setores tradicionais como o agronegócio, construção e infraestrutura pesada. No Brasil, recursos do NDB têm sido utilizados como forma de desenvolvimento de estruturas essenciais, como redes escolares, transição energética e conservação. Porém, em parte, parcerias feitas com o NDB no Brasil, ao contrário de projetos de desenvolvimento liderados somente pelo banco, têm tido seus recursos utilizados em facilitar a agro-exportação no Brasil. 


Tal uso de recursos impede o desenvolvimento sustentável, e contradiz os objetivos de projetos do NDB no país. Tais áreas, reproduzem desigualdades, expulsam populações tradicionais e destroem o ambiente, mostrando uma certa contradição dentro dos objetivos do NDB e BRICS. 

Celso Furtado já nós alertava sobre tais processos, dizendo que ‘crescimento sem transformação’ não é desenvolvimento. O BRICS em sua forma atual têm uma ausência clara de pavimentação para uma futura democratização da economia, da soberania dos recursos estratégicos e o protagonismo da maioria da população nos assuntos do bloco, sendo estes somente os fatores gritantes. Há um risco severo que o BRICS reproduza padrões coloniais com uma cobertura de reordenamento econômico, sendo isto visto recentemente com a China sendo dona de cerca de 80% da produção química de lítio do Mundo, causando danos irreversíveis devido ao uso extensivo de água, afetando especialmente os países do Sul Global. 

A introdução de movimentos populares ao seio da última cúpula do Brics no Rio há de ser vista como uma vitória significativa na disputa de espaço no bloco. A recente participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), ainda fora da estrutura oficial, porém visível, introduziu horizontes populares ao centro dos círculos diplomáticos. A presença de João Pedro Stedile, liderança do MST, colocou na mesa da cúpula pautas de soberania alimentar, reforma agrária e agroecologia, tensionando os países membros que seguem uma lógica extrativista.


A especial presença do MST mostra que a única forma em que o bloco poderá se legitimar como alternativa emancipadora será com a presença dos demais grupos reivindicativos de cada país membro (sendo eles ‘oposição’ ou parte da ‘base governista’), com mobilizações sociais que inserem a vida e os direitos dos povos no centro da sua agenda. Sem a presença de tais movimentos, o avanço do bloco como alternativa real será difícil, se distanciando cada vez de uma transformação real. 

O BRICS, porém, enfrenta dilemas e contradições estruturais, por um lado sendo um canal de cooperação ‘Sul-Sul’, ampliando parcerias econômicas e possibilitando alternativas de financiamento menos condicionadas à ortodoxia liberal. Por outro lado, suas principais potências (China e Índia) operam com forte pragmatismo econômico, priorizando a expansão de mercados e segurança com insumos estratégicos, por mais que isso implique reproduzir relações desiguais com parceiros econômicos menores. Tal contradição é evidente no plano ambiental. Apesar do discurso oficial enfatizar o desenvolvimento sustentável, a prática revela incentivos a projetos com alto impacto ambiental, com a ampliação da fronteira agrícola e a exploração de recursos minerais em

larga escala. Corre-se o risco da ‘alternativa’ oferecida pelo BRICS ser uma mera mudança de fornecedor de capitais, e não de uma nova lógica civilizatória.


A relevância política dos BRICS é inegável, porém ainda é um projeto em aberto, com variadas tensões internas e externas. O bloco tem se ampliado rapidamente nos últimos anos, com a entrada de novos membros e diversificação de parcerias, consolidando um cenário internacional com poderes dispersos. Todavia, a dispersão de poder não é sinônimo de democratização das relações internacionais, e tampouco garante que as necessidades das populações envolvidas sejam vistas como prioridade. O futuro do BRICS dependerá de uma disputa interna, impondo-se uma visão de futuro. Através da tendência a reproduzir uma lógica acumulativa e de competição entre potências, ou a construção de um espaço radicalmente comprometido com a superação de assimetrias históricas entre os países, valorizando a soberania popular e a cooperação solidária. 

O Bloco encontra-se em uma encruzilhada. Podendo escolher em seguir como um arranjo pragmático entre países, disputando somente espaço e influência no mesmo tabuleiro que manifesta querer mudar, ou assumir um compromisso real de transformação das estruturas que sustentam a desigualdade, dependência econômica e destruição ambiental sofrida por todos os países-membros do Bloco. Para isto se concretizar, não bastará multiplicar as cúpulas, que acontecem cada ano, será preciso se abrir à participação dos povos, incorporar agendas reais de soberania alimentar, justiça climática e democratização da economia, confrontando a lógica extrativista que orienta grande parte dos projetos ativos do BRICS. A falta de tal passo deixará claro que a proclamada ‘alternativa’ será apenas uma mudança de bandeiras em uma pirâmide de poder, e a promessa de uma alternativa inclusiva se dissolverá em mais uma oportunidade perdida na história do Sul Global.


Nota editorial

O presente artigo está escrito no idioma do autor, Português do Brasil. 


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