Esgotados. Desgastados. Sem Validade.
Artigo de: Gabriel Fernandes (@gabrielfernandes.pt)
Portugal volta a arder. É uma repetição que já devia ter terminado, um filme que todos conhecemos, com o mesmo enredo e as mesmas consequências, mas que insiste em regressar a cada Verão. A imagem é sempre semelhante: colunas de fumo a rasgar o horizonte, aldeias cercadas por chamas, bombeiros exaustos a cair sobre os próprios joelhos e populações com a vida reduzida ao que conseguem carregar nos braços. Este é o retrato de um país que se habituou a reagir, mas nunca aprendeu verdadeiramente a prevenir.
O combate aos incêndios não começa quando as sirenes soam nem quando os helicópteros levantam voo. Começa nos meses frios, na gestão das florestas, na limpeza dos terrenos, na criação de barreiras naturais, na fiscalização efetiva e na responsabilização de quem falha. É no Inverno que se desarma o Verão, mas ano após ano o investimento continua a chegar tarde e mal direcionado. O Estado anuncia milhões, orgulha-se de reforçar orçamentos e equipamentos, mas no terreno os operacionais continuam a pedir o básico: água, mantimentos, descanso e meios adequados e modernos para enfrentar um inimigo que não conhece pausas.
Em 2017, Pedrógão Grande mostrou-nos o que significa falhar de forma trágica. Sessenta e seis vidas perdidas, centenas de casas destruídas, famílias inteiras desfeitas. Jurou-se mudança. Criaram-se relatórios, multiplicaram-se promessas, falaram-se em reformas profundas. E, no entanto, quase uma década depois, voltamos a encontrar bombeiros esgotados, terrenos por limpar, linhas elétricas envoltas em vegetação, planos municipais desatualizados e uma estratégia nacional que se dissolve no primeiro vento quente de Agosto. A teoria continua a valer mais que a ação, e isso tem de mudar.
Os números mais recentes impressionam, mas não surpreendem. Milhares de homens e mulheres mobilizados, centenas de viaturas, dezenas de meios aéreos, uma máquina gigantesca movida pelo esforço humano e por um sentido de missão que nenhum orçamento pode comprar. São voluntários e profissionais que deixam a família para enfrentar paredes de fogo, que arriscam a própria vida por desconhecidos, que regressam a casa com fumo nos pulmões e olhos queimados pelo cansaço. Mas também são eles que sentem, mais do que ninguém, que esta é uma luta desigual…porque a prevenção falha e porque, na hora da verdade, o peso do combate recai sobre ombros já gastos.
A cada novo incêndio, reacende-se o debate. Há quem defenda a profissionalização de grande parte do dispositivo, há quem sublinhe a necessidade de gestão florestal integrada, há quem clame por maior responsabilização das autarquias e dos proprietários. Tudo isto é válido, mas nada disto é novo. O problema não é falta de conhecimento, é falta de continuidade, de coragem política e de capacidade de executar.
Portugal não sofre de desconhecimento, sofre de memória curta. E isso, tem também de mudar. Hoje, os bombeiros estão esgotados, as populações estão desgastadas e o modelo está sem validade. Mas ainda há tempo para reescrever este ciclo. A prevenção é lenta, silenciosa e ingrata, mas é a única arma capaz de vencer um fogo que já não é só das florestas…é um fogo que queima a própria confiança no futuro.
No dia 15 de agosto celebrei o meu aniversário, mas, em vez de o passar junto da minha família e amigos, à meia-noite encontrava-me numa corporação, mais precisamente dentro da Sala de Operações e Comunicações. Foi uma experiência marcante que me inspirou a escrever este artigo. Este texto é dedicado a todos os bombeiros, homens e mulheres que, diariamente, colocam a sua vida ao serviço da comunidade. Contudo, quero deixar uma palavra especial à Corporação dos Bombeiros Voluntários da Covilhã. Durante os trágicos incêndios que assolaram a região, perderam um dos seus, mas, mesmo perante a dor e a perda, permaneceram firmes, cumprindo a sua missão com coragem e dedicação inabaláveis.
A todos eles, deixo o meu mais profundo reconhecimento e gratidão. Estarei eternamente agradecido pelo exemplo de resiliência, altruísmo e humanidade que representam, para além do acolhimento que senti, e acolhimento que fizeram à minha paixão pelos bombeiros e pelo combate ao flagelo do fogo.
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