Chat Control: A proteção das crianças não pode ser feita à custa da liberdade de todos
Por Miguel Bento Alves
A União Europeia está a discutir um regulamento ambicioso, intitulado “Regulation laying down rules to prevent and combat child sexual abuse” (COM(2022) 209), popularmente conhecido como Chat Control. O objetivo é indiscutivelmente nobre: combater o abuso sexual infantil online, reforçando as responsabilidades das plataformas digitais e promovendo a criação de um Centro Europeu para coordenar esforços e apoiar as autoridades.
Mas o método proposto levanta sérias dúvidas. O regulamento prevê que, mediante ordens judiciais ou administrativas, os prestadores de serviços digitais possam ser obrigados a detetar, notificar e remover material de abuso sexual infantil. Na prática, isto pode implicar que todas as comunicações, até mesmo em aplicações com encriptação ponta-a-ponta, sejam sujeitas ao scan automático no dispositivo do utilizador — o chamado client-side scanning.
E é aqui que surge a controvérsia: especialistas, juristas e organizações de direitos digitais alertam que este modelo coloca em causa não apenas a privacidade, mas também a própria segurança digital.
A lei prevê:
• Avaliações de risco por parte das plataformas digitais, para identificar potenciais abusos dos seus serviços.
• A possibilidade de emissão de ordens específicas de deteção, remoção ou bloqueio.
• A criação de um EU Centre, com funções de apoio técnico, coordenação e análise.
• O uso de tecnologias que permitam a deteção de material abusivo mesmo em sistemas encriptados.
O que os críticos acrescentam:
• Quebra indireta da encriptação. O regulamento não exige explicitamente “portas traseiras”, mas ao obrigar ao scan no dispositivo, antes da encriptação, cria uma fragilidade estrutural. Plataformas como Signal e WhatsApp já alertaram que isto compromete a promessa de privacidade das comunicações.
• Risco de falsos positivos. Estudos independentes apontam que sistemas de deteção automática podem classificar incorretamente conteúdos inocentes como ilegais. Embora a lei não forneça percentagens, a experiência policial em vários países mostrou taxas elevadas de erro, com consequências devastadoras para inocentes.
• Vigilância em massa. Juristas do Conselho da UE advertiram que a aplicação generalizada destas medidas pode configurar “vigilância indiscriminada”, em violação dos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
• Precedentes perigosos. Críticos temem que, uma vez criada a infraestrutura de monitorização universal, o seu uso seja alargado a outros fins — terrorismo, pirataria ou até discurso político.
O Chat Control levanta, portanto, um dilema central: como conciliar o dever de proteger crianças com o dever de proteger liberdades fundamentais?
ica ignorar o problema. Significa procurar soluções mais inteligentes e proporcionais, tais como:
• Reforço de equipas policiais e de cibercrime, com mais meios para atuar sobre casos e redes já identificadas.
• Cooperação internacional eficaz, já que grande parte destes crimes ultrapassa fronteiras.
• Educação digital preventiva, ajudando famílias e escolas a reconhecer sinais de risco e capacitando as próprias crianças.
• Ferramentas voluntárias de denúncia e monitorização, que já demonstraram eficácia sem impor vigilância universal.
• Apoio direto às vítimas, garantindo que a justiça se centra no que realmente importa.
O Chat Control representa muito mais do que uma política setorial. É um teste decisivo à identidade da União Europeia. Queremos ser o continente que sacrifica a liberdade em nome da segurança? Ou queremos ser o exemplo de que é possível proteger os mais vulneráveis sem destruir o direito fundamental à privacidade?
Se for aprovado sem alterações profundas, o regulamento abrirá a porta à normalização da vigilância preventiva em grande escala. Mas se for rejeitado ou revisto de forma responsável, a Europa pode liderar o mundo mostrando que a proteção das crianças e a liberdade digital não são objetivos incompatíveis.
A luta contra o abuso sexual infantil exige determinação, inovação e cooperação. Mas não exige — e não pode exigir — que toda a sociedade viva sob suspeita permanente.
O Chat Control, na forma atual, falha este equilíbrio. É preciso proteger as crianças, sim. Mas também é preciso proteger a liberdade, a privacidade e a segurança digital de milhões de cidadãos inocentes.
O verdadeiro dever da nossa geração é este: defender a infância sem destruir a liberdade.